quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O código da aliança

Shalom!

Repasso a vocês um interessantíssimo texto de um amigo, Igor Miguel.

Boa leitura!

Ele nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu amor, no qual temos a redenção, a remissão dos pecados. (Cl 1:13-14)

Os eleitos, uma vez salvos pela graça e adotados, são inseridos, ou melhor, transportados do império das trevas para o Reino do Filho de Deus (Jesus). Este "transporte" tem implicações muito sérias, pois significa uma mudança de "realidade". Neste versículo, Paulo faz uso de uma linguagem de libertação, que remete a páscoa israelita [hb. pêssach - פסח], quando o povo israelita foi liberto do Egito e engajados em uma jornada para a liberdade (Êxodo).

De fato, o próprio termo hebraico para "páscoa" quer dizer "passagem", uma transição do estado de cativeiro e prisão, para o estado de liberdade. Neste sentido, Israel torna-se o povo de YHVH e este "tornar-se povo", implica um tipo adoção nacional ou uma relação de suserania e vassalagem.

Nos povos da antiguidade, quando um reino mais fraco era dominado por um reino mais forte, os cidadãos que se rendiam do reino dominado, eram absorvidos pelo reino suserano, tornando-se assim seus vassalos. Um "rei" ou "senhor" exigia, como um tipo de rito de absorção nacional, que os vassalos se comprometessem com o novo reino por meio de uma confissão pública dos decretos reais, firmando assim uma aliança com aquele rei, podendo estes decretos serem denominados de código da aliança.

Em uma lógica semelhante, Deus ao libertar o povo de Israel do Egito, os inseriu em seu reino, transformando-os em povo da aliança ou gente peculiar, ao menos esta é a linguagem que encontramos em Êxodo quando é dito:

Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, então, sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos; porque toda a terra é minha; vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa. São estas as palavras que falarás aos filhos de Israel. (Ex 19:5-6)

Interessante que este quadro teológico de nova nacionalidade e adoção nacional é também usado pelo apóstolo João ao se referir à Igreja (Ap 1:6; 5:10) e pelo apóstolo Pedro quando escreveu em sua primeira carta:

Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz; vós, sim, que, antes, não éreis povo, mas, agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia. (I Pe 2:9-10).
As palavra de Pedro remetem ao êxodo, uma linguagem do imaginário judaico da relação exílio-libertação. A teologia petrina é que a Igreja é composta por um "povo" que se tornou "povo de Deus". Esta mudança de estado é afirmada com o uso de algumas expressões e conceitos chaves como: o movimento "trevas-luz", o "chamado" (ideia de eleição), o adjetivo propriedade exclusiva, e outras termos que evocam este novo estado. Neste ponto, é importante destacar a noção de Senhorio de Cristo.

Não são poucas vezes que o Novo Testamento se refere a Jesus como Senhor (gr. kyriós). Isto se deve ao fato, de que há uma relação de soberania entre Cristo e seus súditos. Ele é o senhor "suserano", o rei, com quem os cativos-libertos firmam um pacto de liberdade. Por isso, os "chamados" são inseridos no novo reino, onde desfrutarão de todos os benefícios deste pacto. Na lógica bíblica não existem despatriados, ou se pertence a um reino tirano de escravidão ou a um reino de liberdade e justiça.

No Reino de Deus, não há "autonomia" no sentido moderno, no sentido de uma "lei para si mesmo". Esta proposta, remete a queda do homem no Éden. Por isso a "liberdade moderna" é uma falsa liberdade. A proposta bíblica é que em lugar da "autonomia" baseada no ego humano afetado pela queda, a verdadeira liberdade, que remete à criação, está em se submeter a lei de Deus. Algo que a teologia cristã-reformada chamaria de teonomia.

A teonomia é admissão de que no Reino de Deus a verdadeira liberdade opera-se pela internalização da lei de Deus pelo Espírito. Se baseia no cumprimento da profecia de Jeremias sobre a Nova Aliança , em que um dia a lei do Senhor seria escrita na mente e nos corações (Jr 31:31 e seg.). O Novo Pacto é uma nova relação senhorio-súdito, pois, no pacto anterior, havia uma submissão mecânica ao código da aliança, neste pacto renovado, a lei é inscrita, integrada ao interior humano. Por isso o profeta Ezequiel viu dias em que um coração regenerado seria dado ao homem e que o próprio Deus operaria (monergisticamente) a obediência da lei a partir dos corações dos homens (Ez e
36:26-27). Esta é a liberdade do Espírito!

Enfim, a vocação é entender que vivendo nesta realidade do Espírito, no Reino de Deus (no Civitas Dei - adotando Agostinho), Jesus Cristo tornou-se Senhor, soberano sobre o Povo de Deus. O Povo de Deus vive uma realidade completamente nova e uma liberdade que é operada por Deus, quando Ele inscreve nos corações dos santos seus preceitos, concedendo-lhes nova identidade e novo sentido existencial. Isto é algo que atinge as relações concretas desta existência, a rotina, que envolve o comer, beber, casar, trabalhar, pesquisar etc. Agora, os resgatados vivem sob uma aliança, sob a linguagem e o estilo de vida de um novo reino, o Reino de Deus.

Soli Deo Gloria.
Kol HaKavod LaShem 
Igor Miguel

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O caminho do samaritano




"Jesus, prosseguindo, disse: Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu nas mãos de salteadores, os quais o despojaram e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. Casualmente, descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e vendo-o, passou de largo. De igual modo também um levita chegou àquele lugar, viu-o, e passou de largo. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou perto dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão; e aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho; e pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte tirou dois denários, deu-os ao hospedeiro e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que gastares a mais, eu to pagarei quando voltar. Qual, pois, destes três te parece ter sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu o doutor da lei: Aquele que usou de misericórdia para com ele. Disse-lhe, pois, Jesus: Vai, e faze tu o mesmo." Lc 10.30-37

O que pensamos quando lemos esta parábola? Conseguimos discernir os dois caminhos apresentados por Jesus? Ou existe apenas um caminho...? Afinal de contas, que caminho é este?

Bom... vamos por partes. Os elementos da parábola são: o necessitado, o sacerdote, o levita, o samaritano...e os caminhos. Encontramos uma situação grave, com alguém que sofre um assalto no meio de sua jornada e fica à mercê das circunstâncias. Quem poderia, nesta situação, socorrê-lo? Olhando os personagens apresentados, de quem esperaríamos a ajuda?

Bom, aí é onde podemos ter uma surpresa. Encontramos frustração onde esperávamos a certeza, e a ajuda de onde menos esperamos...

Entra em cena o sacerdote. Seu papel na sociedade era de representar os homens diante de Deus e vice-versa. As pessoas tinham que ver em sua vida este reflexo, e ele mesmo deveria ter uma vida ilibada - pois representava nada menos que o Criador. Como sacerdote, certos tipos de postura eram dele exigidas - o que poderia acarretar em viver no "automático" com relação às regras da religião, ou do sistema, como passaremos a chamar. De certa forma, podemos pensar que viver de acordo com as regras já havia se tornado mais importante do que viver a vida real, ordinária.

Ou seja, um suposto representante de Deus, do doador da vida - aquele que deveria representar o amor aos homens, ignora a dificuldade de alguém, preferindo manter sua postura - afinal de contas, como sacerdote, ele deveria se manter "puro" - sem contato com impuros. Na mesma Torá que ordena isso, encontramos também o fato de que existem diferentes níveis de mitzvôt (mandamentos), sendo uns mais importantes que os outros. Tanto que Jesus ensina que entre guardar o shabbat e salvar uma vida, este último se torna mais importante. Mas para aquele sacerdote, seguir as regras do sistema já se tornara mais valioso que representar a Deus. Ele havia se tornado apenas um representante do sistema.

O segundo a passar era um levita. Alguém destacado no serviço do templo, e nos dias de hoje, um termo associado aos músicos da igreja. Teoricamente, era alguém que teria uma intimidade profunda com Deus. Seria o responsável hoje por levar o povo à adoração, trazendo-os para mais perto de Deus. Poderia alguém tão próximo de Deus ignorar a necessidade de outro? Pode, desde que o título já não reflita a sua vida pessoal. E o necessitado continua à beira do caminho...

Bom....e quem passa em seguida?

Um samaritano. Alguém que sofria um profundo desprezo pelos judeus da época, pelo fato de sua assimilação pelos Assírios e rompimento com o sistema do Templo. Eram evitados e considerados como impuros, sendo-lhes impedida a entrada no Templo. Logicamente, o que esperaríamos de alguém tão distante do sistema, tão alienado dele?

Pois é. Somos surpreendidos pela graça. De onde menos esperamos, daquele a quem nem cumprimentamos ou consideramos vem a mão estendida, o olhar de misericórdia, o socorro.

E a conclusão torna-se inevitável. O caminho da graça e o caminho do sistema nem sempre são os mesmos...

Não que eles sejam opostos! Mas quando perdemos a essência, quando os títulos se tornam mais importantes que a vida... quando o aparecer vale mais que o ser...

Quando esquecemos de servir, e esperamos ser servidos...

O sistema faz mais uma vítima, e a vida perece à beira do caminho...

Por onde temos andando?

Daniel Ben Iossef